16 de abril de 2007

Belém: A cosmopolita terra maldita (parte II)

O terramoto de 1755 recoloca Santa Maria de Belém no mapa político do país. Quando se iniciam os estudos para a recuperação da capital do império português, Manuel da Maia coloca três hipóteses ao Marquês de Pombal:
1-Nada fazer. Assim como o povo, naturalmente, tinha erigido a cidade antiga, com as suas ruas e ruelas serpenteantes ao longo do tempo, de novo o faria.
2-Sobre as ruínas da cidade construir uma nova, planeada, organizada e que mostrasse os caminhos do presente e do futuro ao Portugueses, até então tão afastados das Luzes do século.
3-Esquecer a cidade amaldiçoada e construir tudo de novo, um novo começo para a Nação, uma nova capital… em Santa Maria de Belém.
Sabemos qual foi a escolha de Sebastião José. Será que há factos registados que nos permitam compreender quais foram as razões para a escolha? Ou só podemos especular? Assim sendo, será que a recusa da terceira opção estaria de algum modo relacionado com o facto de os poderosíssimos Távoras possuírem um palácio em Belém naquele exacto momento histórico? Já houve quem escrevesse romances históricos, e quem realizasse séries televisivas em torno desta situação.
Aos Távoras sabemos o que foi feito, assim como ao seu palácio: este último foi totalmente arrasado, após o que o solo foi lavrado e salgado. Para eternizar este castigo, um pelourinho foi erguido que publicamente atesta a rejeição da Coroa desta terra. Terá isto reforçado a sobrevivência do velho toponímico “restelo”? De qualquer modo o que hoje conhecemos como o Beco do Chão Salgado lembra-nos a utilização de um castigo quase tão antigo quanto a História, pois até os Romanos lavraram e salgaram a terra de Cartago depois de a terem conquistado.
O facto é, a Lisboa de então está em crescimento imparável, tanto que Belém volta a ser ocupada, de novo se constrói. São os pobres, os menos afortunados, os criados, os futuros operários que ali se vão estabelecer. Começa a nascer o que é hoje a Rua de Belém, então uma quase-aldeia às portas da cidade, feita de edifícios muito modestos. Reparem como aquelas casas, que datam do início séc. XIX, não têm mais de três pisos… Ao mesmo tempo, o que é hoje a Rua da Junqueira faz-se de palacete em palacete, um renque que hoje alberga, por exemplo, o ISCSP, a Administração do Porto de Lisboa, outro ainda que já foi o Liceu D. Amélia, etc. A meio desta rua, mesmo em frente de um dos portões da Cordoaria (importante indústria então), há um chafariz público que faz parte da rede construída a partir do Aqueduto das Águas Livres. Não há nenhum em Belém, a terra amaldiçoada.
Das fraquezas se fazem forças. Belém no séc.XIX constitui, com Alcântara, e estendendo-se até Algés e à Cruz Quebrada, um eixo comercial e industrial de fundamental importância para uma cidade que, apesar do seu provincianismo, vê o presente chegar. Já temos no blog fotografias que atestam este passado industrial e proletário. Há o gasómetro, hoje o Museu da Indústria. Ainda me lembro da fábrica da borracha Repenicado & Bengala, que existia onde hoje está o CCB. Passeiem pelo pequeno bairro entre a Rua Bartolomeu Dias e a Avenida da Índia, entrando pela ruela logo a seguir ao Colégio do Bom Sucesso e saindo junto à Avenida da Torre de Belém. Estarão a ver habitações térreas ou no máximo de dois pisos, habitações de operários, de pescadores, enfim. Esta é a Belém que nasce e se desenvolve nos tempos do Romantismo e do Modernismo, ou seja, a Belém que terá sido conhecida por Camilo, Cesário Verde, Eça de Queiroz, Fernando Pessoa. Não conheço a nenhum deles uma referência a Belém, mas por favor corrijam-me se estiver enganado. Das grandes personalidades do séc. XIX, só uma está ligada a Belém. Foi Alexandre Herculano, que enquanto foi deputado às Cortes submeteu uma petição destinada a elevar a Paróquia de Santa Maria de Belém. A petição foi aceite e foi esta a data comemorada com a conferência do Prof. José Hermano Saraiva.
O futebol vai dar aos belenenses satisfações logo desde o início da sua prática em Lisboa. No início, o Sporting Club of Portugal era o líder incontestado, a equipa por excelência, os melhores atletas da cidade. Não admira, fora formado pela colónia inglesa em Lisboa, que afinal trouxera o jogo para cá, tal como já tinha feito na Madeira. Os seus jogadores eram rapazes de famílias de pelo menos da classe média, bem educados e alimentados (estas coisas ficam, por isso ainda hoje o SCP tem fama de ser o clube dos queques). Pelo contrário, havia o Carcavelinhos. Rapazes da orla do rio, de Alcântara e de Belém, que nas ruas dos seus bairros jogavam com bolas improvisadas. O Carcavelinhos cometeu a proeza, nos primeiros anos do séc. XX, de ganhar um jogo e um troféu aos até então invencíveis Ingleses. Feito notável que lhes deu fama.
Ao mesmo tempo, lá para as quintas de Benfica, um outro grupo de entusiastas do futebol queria formar um clube, ao qual queriam chamar “Sport Club de Benfica”. Primeiro, resolveram o problema de terem um lugar onde jogar. Alguém lhes disponibilizou um campo de nabos, na condição de apanharem gratuitamente os ditos nabos. Feita a colheita dos nabos, aperceberam-se de que não tinham jogadores suficientes. Pediram então ajuda ao Carcavelinhos. Este aceitou compartilhar jogadores, sob uma condição: que o novel clube pertencesse a Lisboa. O nome foi então mudado para “Sport Lisboa e Benfica”. Do resto reza a história: o Carcavelinhos cindiu-se entre o Atlético Futebol Clube que se foi instalar na Tapadinha, e o Clube de Futebol “Os Belenenses”, que herdou o campo das Salésias. Todos os que como eu, estudaram na Marquês de Pombal jogaram futebol nesse terreno histórico.

Salazar encontra em Belém um local excelente para a expressão da política do Estado Novo, a diversos níveis. Temos os bairros construídos de uma assentada, a mesma casa replicada vezes sem conta, num esforço que há que reconhecer meritório por providenciar um tecto decente a tantos que o não tinham. Mas, atenção: as classes não são para se misturarem. Por isso há o bairro operário do Caramão da Ajuda ou o que existe por trás da Rua dos Jerónimos, bem afastado do bairro dos quadros que se desenvolve entre a Avenida da Torre de Belém até ao IAEM. Literalmente por cima destes bairros há “as vivendas”, ou seja, toda a zona de Belém edificada com habitações de luxo, muitas das quais hoje utilizadas por Embaixadas ou até por empresas. Originalmente, contudo, “as vivendas” pertenceram à classe mais próxima do poder político, aquela que, directa ou indirectamente, criou, desenvolveu e usufruiu do Estado Novo. Esta é, se quisermos, a Belém privada, a Belém das famílias, a Belém das pessoas que vem a constituir um certo microcosmo. Gostaria de ver esta época estudada por alguém mais sabedor do que eu. Cito apenas um facto indiciador da existência desse microcosmos: é que foi das “vivendas” que ressurgiu o topónimo “restelo”. A partir dali, quem dissesse viver no Restelo (finalmente capitalizando o nome) fazia imediatamente saber que era pessoa de categoria, pois viver no Restelo não era viver em Belém, embora já naquele momento a Paróquia e a freguesia de Santa Maria de Belém fossem comuns às diversas áreas.
Mas a marca mais profunda do Estado Novo em Belém reside na vertente pública. Mussolini construiu em Roma a E.U.R., a Exposição Universal de Roma. Nunca abriu ao público porque estava planeada para 1940. Sagazmente aproveitando a ausência de paz na Europa para dar ao seu Estado Novo uma imagem internacional, e sobretudo para efectuar uma demonstração interna do seu êxito, Salazar faz organizar a Exposição do Mundo Português, em Belém. Restam-nos legados importantes: a Praça do Império; o Padrão dos Descobrimentos, que embora edificado em 1960 seguiu a traça do monumento que fora erguido em 1940, em materiais perecíveis; as duas marinas; o arranjo em torno da Torre de Belém, em particular o relvado onde tantas vezes jogámos à bola.
A última grande intervenção nos espaços de Santa Maria de Belém já nos apanhou adultos. Foi o Centro Cultural de Belém. Devo confessar que nunca por lá andei de bicicleta. Mas os meus filhos já.
Que nos reservará o futuro? Uma ameaça decerto, a ameaça da desertificação dado que o preço das habitações dentro de Lisboa é proibitivo. Ao mesmo tempo, mesmo por trás das nossas ruas, onde havia a Vila Correia, construíram todo um novo bairro. Agora que já não vivo em Belém, faço votos para que os novos belenenses reconheçam o valor de viver onde era possível jogar futebol com qualquer puto que aparecesse. Que mantenham essa confiança. Vale mais do que os apartamentos que compraram.

Paulo Boavida

1 comentário:

Anónimo disse...

Parabéns pelo excelente apontamento histórico (só agora tive oportunidade de o ler calmamente). A fazer jus à pessoa que sempre cultivou o saber. Gostei muito.
Até um próximo post.