2 de abril de 2007

Belém: A cosmopolita terra maldita (parte I)

Se a memória não me atraiçoa, em 1984 a Paróquia de Santa Maria de Belém celebrou 150 anos de existência. Um dos modos de celebrar a data foi a de realizar uma conferência na sacristia da igreja do Mosteiro dos Jerónimos, subordinada ao tema da história local. A conferência foi proferida pelo Prof. José Hermano Saraiva, ilustre belenense. Tanto quanto sei, o texto da conferência nunca foi publicado. Gostaria muito de estar enganado, pelo que desde já deixo o desafio: descobrir se o Professor, ou a Paróquia, ou qualquer outra entidade, deu à estampa o texto. O que se segue, então, é o meu esforço de memória para recapitular as palavras que foram então proferidas, daquele modo carismático e único que conhecemos da TV. Coloridas, inevitavelmente, pela minha própria experiência dos locais e das pessoas.
Desde a conquista de Lisboa até à primeira metade do séc. XIV o restelo foi um local maldito, identificado pelo nome. “Restelo” vem de restar, ou ficar. Os navios que aportavam a Lisboa, antes de chegar ao cais, deixavam no restelo os doentes que eventualmente transportassem. Garantiam assim o direito à acostagem. Para receber os doentes no restelo, o lugar onde se fica, havia instalações, rudimentares mesmo para a época. Lisboa protegia-se dos miasmas desta forma, em particular da peste negra que assolou a Europa medieval, embora sem sucesso. Portanto, restar aqui significava uma morte quase certa.
Outra característica do restelo era ser então uma floresta. Isto favorecia a actividade do contrabando, pois era possível desembarcar bens e pessoas com facilidade e a coberto de esforços de vigilância. D. João I acabou com a situação e mandou arrasar a floresta do restelo.
O Infante D. Henrique compreende, após a aventura de Ceuta, que precisa de um embarcadouro fácil de usar perto de Lisboa, mas que não complique a vida quotidiana de pequenos barcos e navios que enchem os cais da cidade. Precisa de uma praia onde homens e bens possam ser levados de bote para as naus e caravelas. Precisa, em resumo, da praia do restelo. Mas havia o problema da má reputação do lugar. Para a fazer esquecer, D. Henrique cria a Paróquia de Santa Maria de Belém, com sede numa pequena capela à beira-mar. Doravante, os textos formais, históricos, passam a identificar o local pela nova toponímia.
Mas o nome “restelo” permanece no imaginário popular. No Canto IV de “Os Lusíadas”, Luís de Camões encena a partida da armada de Vasco da Gama para a Índia. O poeta começa por descrever a escolha dos diversos capitães e passa para a descrição da cena que se passaria na praia de Belém:

E já no porto da ínclita Ulisseia
C’um alvoroço nobre e c’um desejo
(onde o licor mistura a branca areia
Co’o salgado Neptuno o doce Tejo)
As naus prestes estão; e não refreia
Temor nenhum o juvenil despejo,
Porque a gente marítima e a de Marte
Estão para seguir-me por toda a parte

Eis senão quando, pelo meio das despedidas entre os que vão e os que ficam, descritas também por Camões, há um acontecimento:

Mas um velho de aspeito venerando,
Que ficava nas praias entre a gente,
Postos em nós os olhos, meneando
Três vezes a cabeça, descontente,
A voz pesada um pouco alevantando,
Que nós no mar ouvimos claramente,
C’um saber só de experiências feito,
Tais palavras tirou do experto peito:

Seguem-se dez famosíssimas estrofes, um discurso que na obra se quer profético. À personagem que o profere hoje ainda chamamos “O Velho do … Restelo”. Mas a famigerada palavra não está n’ Os Lusíadas!


Paulo Boavida

1 comentário:

Milhano disse...

Paulo,
O texto é magnífico, vindo de quem vem outra coisa não seria de esperar.
Bem aparecido sejas e continuação de magníficos posts.